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de 26 a 30 de Abril de 2010
VII Congresso da Associação Mundial de Psicanálise
Semblantes e Sinthoma
VII Congresso da Associação Mundial de Psicanálise
 
Medir o verdadeiro com o real [*]
Leonardo Gorostiza
 

No seu curso de 10 de dezembro de 2008, Jacques-Alain Miller se perguntava: "O que é um analista na clínica do sinthoma? Ao menos, ele respondia, é um sujeito que percebeu seu modo de gozar como absolutamente singular, a contingência desse modo de gozar, que captou - de que modo? – seu gozo enquanto fora de sentido"[1].

Como podemos ler, dentro da resposta há outra pergunta: de que modo o sujeito captou seu gozo irredutível, singular, contingente e fora de sentido? Para tentar avançar nesta última pergunta, proponho usar uma ferramenta nobre: a fórmula cunhada por Miller, dois anos atrás, ‘medir o verdadeiro com o real’[2]. Fórmula congruente com o plano de trabalho que ele mesmo traçou para nosso próximo Congresso[3]: articular uma dialética entre o sentido e o gozo e manifestar, em nossos trabalhos, a borda de semblante que situa o núcleo de gozo. Quer dizer, não apagar o semblante, mas recuperá-lo na sua dignidade instrumental. Neste caso, para fazer uma leitura de como o sujeito captou seu gozo fora de sentido. Em outras palavras, trata-se de elucidar como o sujeito mediu o verdadeiro com o real. Elucidação, esta, que longe da transparência do sentido, se propõe a desvelar qual foi o laço do semblante com o gozo opaco do sinthoma.

A tradução literal para o espanhol da fórmula "mesurer le vrai au réel" seria "medir lo verdadero a lo real" (medir o verdadeiro ao real). Mas esta é uma tradução que amortece seu caráter paradoxal: a de medir o verdadeiro com a vara do real. Paradoxal porque o real é sem lei e é o incomensurável por excelência[4]. Como medir o verdadeiro com o incomensurável do real?, seria outro modo de dizer a mesma coisa. Sabido é que o contexto desta frase é a reconsideração do passe segundo o TDE, em especial a partir do "Prefácio à edição inglesa do Seminário XI", onde Lacan fala da historisterização no passe. Historisterização – que, no entanto, se dirige a um Outro – supõe um trabalho de "tradução" ou de "interpretação", até mesmo no sentido teatral do termo, daquilo que foi alcançado em solidão.

Se o passe na cura vai do inconsciente transferencial (interpretativo, que se articula como sentido e que estabelece um laço social) ao inconsciente real (o ininterpretável, fora de sentido e que reenvia à solidão), a questão é como se restabelece um laço com o Outro uma vez que o sujeito alcançou o inconsciente real[5].

Esta operação é o passe bis que, agora, vai do inconsciente real ao inconsciente transferencial e a historisterização – enquanto histeria – embora surja da solidão do inconsciente real, dirige-se ao Outro. "Este é, diz Miller, o teatro do passe. Teatro, histeria e estrutura de Witz reproduzidos pelo dispositivo do passe e sua transmissão. Um novo laço com o Outro que não implica num testemunho do verdadeiro sobre o verdadeiro – o que seria uma metalinguagem – nem uma prova da verdade – isso é a análise – o passe bis supõe ter chegado a saber que a verdade é uma miragem que se extingue quando, perante o inconsciente real, se eleva a satisfação que marca o fim da análise[6]. Quer dizer que, sob esta perspectiva de medir o verdadeiro com o real, é central a noção de satisfação.Mas não só a satisfação alcançada pelo sujeito no fim da análise, mas aquela suscitada nos outros porque, no passe – concebido como historisterização – é crucial "obter a satisfação dos colegas"[7].

Ora, há diversas maneiras de obter a satisfação dos colegas. Há uma satisfação que pode conseguir-se pela identificação, por entendermos e compreendermos, na medida em que compartilhamos um jargão, um sentido comum. Esta satisfação é aquela na qual a ressonância é a do corpo enquanto imaginário, isto é, a satisfação que faz a boa forma do Uno do uniano. Mas a satisfação que Lacan assinala no passe é de outra índole.

Em que consiste essa satisfação? Em compreender, uma vez que o sentido compreendido é o gozo, a satisfação[8]. Então, como conceber essa satisfação da perspectiva de medir o verdadeiro com o real se o real é, precisamente, o que exclui o sentido?

Proponho o seguinte: trata-se de uma satisfação que, longe de fazer ressoar o corpo enquanto imaginário, evocando a boa forma do Uniano, é capaz de fazer ressoar uma conexão com o buraco, isto é, a conexão que preserva o Unário e que é própria da identificação ao sintoma[9].

Lembremos que o horizonte do testemunho nunca é o da completude do Uniano, mas o da hiância – a que introduz e preserva o Unário - e onde o díspar de um real pode ser alojado e transmitido[10].

Assim, não temos que esperar do testemunho uma informação completa, uma vez que o que se transmite são sempre "modalidades da perda"[11].

Mas apesar dessa perda, às vezes se produz "o milagre da satisfação", que acontece quando, na própria mensagem – sempre insuficiente –, o Outro chega a entender o que está além, chega a entender justamente no fracasso do dizer[12].

Assim sendo, a satisfação alcançada e a suscitada nos colegas é a que se recorta sobre um fundo de insatisfação ligado a uma perda que não é fruto da impotência da linguagem mas signo de uma nova relação com a repetição: aquela que sabe que há uma impossibilidade e que, sem excluir o gozo do saber, permite enodá-lo numa relação de extimidade.

Satisfação, esta, que responde a uma ética do fracasso inerente ao bem dizer que surge de cercar, cernir, o que não pode traduzir-se e faz ressoar o gozo no saber. Tratar-se-ia, então, do paradoxo de uma tradução que preserva uma relação ao intraduzível enquanto tal.

O passe bis, conclui Miller, supõe estabelecer a diferença entre o verdadeiro e o real, elaborar a deriva do verdadeiro, medir aquilo que fez função de verdade e que, na análise, do ponto de vista do real, se dedicava, incessantemente, a extinguir ou a velar esse real[13].

Entendo, assim, que para "medir o verdadeiro com o real" é necessário ter isolado um S1, um semblante que, nessa mesma operação, advêm como "outro estilo de significante amo"[14] , um semblante que, ao desnudar sua função de "falso real", torna possível uma leitura: aquela que delimite o intraduzível do gozo opaco do sinthoma.

Se todo discurso, incluído o do psicanalista, é da ordem do semblante e gravita em torno do real para evitá-lo[15], onde situar, então, esta operação? Precisamente na produção de um S1, novo estilo do semblante que já não chama o Outro e que, justamente por isso, permite entrever um vazio, o vazio que se vislumbra no intervalo situado entre o lugar da produção e o lugar da verdade, aí onde Lacan situou a chave da impossibilidade, isto é, o ininterpretável do buraco traumático (troumatique) do inconsciente real[16].

 
Notas
*

Esta intervenção resume e atualiza a que com o mesmo título fora realizada no marco do Seminário do Passe 2007 na EOL, publicada, mais tarde, em La actualidad del pase, Work in progress, Colección de la Orientación Lacaniana, Serie Testimonios y Conferencias N° 9, EOL-grama, Buenos Aires, 2008.

1- "Cosas de finura en psicoanálisis", Curso de 10 de dezembro de 2008, na página web da AMP.
2- "La passe bis", Curso de 10 de janeiro de 2007, in La Cause freudienne, nº 66, Navarin, París, 2007, pág. 209-213.
3- "Apresentação do tema del VII Congresso da AMP", durante o VI Congresso em Buenos Aires.
4- Haveria outras traduções possíveis, i.e.: compassar, ajustar, comparar, avaliar "lo verdadero según lo real", ou até mesmo "medirse en duelo o combate lo verdadero con lo real".
5- De algum modo isso implica retomar sob outro ângulo aquilo já conceitualizado previamente como o "saldo o momento cínico del final de análisis" (saldo ou momento cínico do final de análise).
6- A miragem da verdade –diz Lacan-, da qual só se pode esperar a mentira, não tem outro limite senão a satisfação que marca o fim da análise. "Prefacio à edição inglesa do Seminário 11", in Outros Escritos, Rio de Janeiro, Seuil, Zahar, 2003, pág. 572.
7- Miller, Jacques-Alain, "Las versiones del pase", in Pase y transmisión, Colección Orientación Lacaniana, Serie Testimonios y conferencias, Nº 5, 2003, página 20.
8- In El saber delirante, Colección ICBA, nº 5, ICBA Paidós, Buenos Aires, 2005, pág. 195.
9- Neste ponto acho crucial a sutil indicação de Lacan acerca de "identificar-se tomando disso –dessa identificação ao sintoma- suas garantias, uma espécie de distância…" (Seminario 24 L’insú…, na aula de 16 de novembro de 1976). È como se dissesse –a meu ver-- que é uma identificação que reserva uma certa distância com relação ao sintoma, que leva inscrita a marca de uma perda.
10- Cf. Laurent, Eric, "Politique de l’unaire", La Cause freudienne, nro. 42 e Najles, Ana Ruth, "La elaboración de los carteles", in Pase y transmisión 3, COL, 1999.
11- Miller, Jacques-Alain, no "Debate" de "La elaboración de los carteles", in Acerca del sujeto supuesto saber, COL, Paidós, 2000, pág. 203.
12- Miller, Jacques-Alain, Lectura del Seminario 5 de Jacques Lacan, Colección ICBA N°2, ICBA-Paidós, Bs.As.,2000, pág. 37.
13- Ibídem, nota 2.
14- Lacan, Jacques, Seminario 17, El reverso del psicoanálisis, Paidós, Bs. As., 1992, pág. 190.
15- Miller, Jacques-Alain, Los usos del lapso, Curso de 26 de janeiro de 2000, Paidós, Bs. As., 2004, pág. 178.
16- É o que se deduz da leitura do testemunho de Mauricio Tarrab apresentado no 3° Encontro Americano do Campo Freudiano, Belo Horizonte, 3 de agosto de 2007. (Há uma versão dessa leitura incluída na intervenção referida no início e que se encontra na página web da AMP). Ver também Miller, J.-A., op. cit., nota 15, pág. 200 e 227.
 
Tradução: Oscar Reymundo
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